Imago

Tag: depressão

  • Ser mulher dói na carne. Acho que é a primeira vez na vida que expresso essa frase. Costumo dizer que viver dói, e dói mesmo! A condição humana é tão especial quanto sofrida. No entanto, ser fêmea confere um pouco mais de sofrimento físico à existência de um ser humano nessa terra. Isso é sentimento meu e tem a ver com a minha trajetória, meu espírito, minha alma, minha carne. Quantas outras fêmeas caminham na vida sangrando e doendo o corpo e a alma? Quase todas. Eu não estou sozinha.

    Minha situação de adoecimento atual, se arrasta há um bom tempo. É um mal sorrateiro que passou batido aos olhos dos médicos, escondeu-se atrás de outras condições e não foi encontrado em exames de rotina até estar avançado. Não me culpo por não ter encontrado antes, pois sempre me cuidei muito e nunca desprezei nenhuma sensação física ou mental.

    Entretanto, uma coisa que incomoda meu coração é que, se não fosse a normalização do sofrimento feminino eu não estaria sentindo a condição de fêmea me esmagar como uma prensa. Eu sempre senti, mas nunca houve acolhimento adequado. Por quê? Simplesmente porque a dor da fêmea é tida como normal. Algumas mazelas do corpo feminino surgem e se desenvolvem livremente, pois não são consideradas anormais.

    Nos tornamos mocinhas escutando mulheres mais velhas nos orientando a fazer cara de paisagem enquanto sofremos, pois “é normal mulher sentir dor” e, segundo elas, é só tomar o remedinho, deitar com as pernas elevadas que daqui a pouco passa e com o tempo acostuma. Esse costume não se torna realidade na vida de algumas, mas, como o sofrimento é normal, então está tudo certo e “algumas mulheres é que são fracas pra dor”.

    O que seria ser forte ou fraca para a dor, visto que não há unidade de medida? O que há é choro, gritos, gemidos, desmaios e ais. Os médicos usam escalas (EVA, EVN), classificações como “de 0 a 10” para entender a intensidade da dor de um paciente: zero é dor nenhuma e dez é dor intensa. Sinto que essas formas não são fiéis, pois qualia não se afere. Em se tratando das minhas dores da carne (no plural, pois sou fibromiálgica diagnosticada também) eu fico com o entendimento filosófico de sensação subjetiva. Quando o assunto é a endometriose, minha resposta ao “de 0 a 10” sempre passou muito do limite da régua.

    Perdi as contas das ocasiões em que, me desfazendo em dores, hemorragia e lágrimas me peguei culpando a mãe dos viventes. Ah, Eva! O que fizeste? A mordida naquela fruta dói em todas as mulheres até hoje. Pobre Eva! A primeira a sentir a dor de ser fêmea, a primeira a ouvir a pena que ressoa até agora nas entranhas femininas: “Multiplicarei sobremodo os sofrimentos da tua gravidez” (Gênesis 3:16). Sim, todas essas dores vividas se referem ao castigo proferido: dores da gravidez. Ovulação, atividade hormonal específica, formação de endométrio, ciclos, sangue, tudo está incluído no processo de procriação.

    E quando, por razões diversas, a tal procriação não acontece, qual deve ser a utilidade de todo esse processo? Os anos vão passando, as ovulações se sucedendo, a saúde se desgastando, a disposição mental minguando e Deus vai mostrando Sua perfeita vontade às fêmeas que não irão parir.

    Esses tempos vi uma transsexual, em entrevista a um programa de TV, afirmando estar em busca de um médico que lhe faça um transplante de útero para que possa engravidar. A impossibilidade é tão estratosférica e a ideia é tão dantesca que indica claramente o adoecimento mental da referida pessoa. Ela não nasceu biologicamente fêmea, nasceu sem útero, mas sonha ter um para tentar sentir uma completude que nunca vai chegar, pois sua falta, aparentemente, é de outra natureza.

    O assunto me atravessou porque enquanto ela, com suas mais de 70 cirurgias plásticas, procura alguém que considere interessante a sua ideia estapafúrdia, eu aguardo longe de casa a iminente cirurgia que poderá extirpar de mim o órgão que melhor caracteriza uma fêmea. A equipe médica faz recomendações, mas a decisão é minha. E que agonia tem sido! Não tenho nem onde chorar em paz sozinha.

    Nunca perdi de vista que o transtorno bipolar não me permitiria a maternidade e também já não sinto por ela nenhum desejo. Este existiu um dia, mas foi minguando com o passar dos anos até não sobrar nem a ideia de um maternar a partir do meu próprio ventre; é certo que nem mesmo para a adoção eu teria saúde e estrutura familiar e financeira. Convivo bem com a impossibilidade de ser mãe, apesar do receio de uma velhice sem alguém jovem e saudável que me acolha. Mas filhos são gerados para garantir cuidado na velhice? Penso que não.

    Deus tem sua forma de trabalhar no coração de cada filha. No meu Ele deixou o amor, o carinho e a compaixão por todas as crianças, as de perto e as de longe, mas tirou qualquer anseio pela maternidade. Minha angústia não é pela possibilidade de ficar sem útero e não poder gerar uma vida, mas simplesmente pela possibilidade de ficar sem útero. Apesar de gerar tanto sofrimento, para mim, esse órgão tem valor simbólico.

    Removendo os anexos inutilizados e as lesões espalhadas pelos outros órgãos, a dor vai reduzir ou sumir, mas a doença é sistêmica e crônica, com ou sem útero eu sempre a terei. Posso pedir que as cirurgiãs o tirem, para eu não mais sangrar e para reduzir meu incômodo, ou posso pedir que o mantenham, permanecendo eu muito vigilante com meu autocuidado. Em meio às dúvidas, o desejo do meu coração é que Aquele que criou o corpo de todas as fêmeas me mostre o que Ele já escolheu para Sua glória.

    Que meu espírito compreenda o ensino do Pai, que minha alma seja confortada e adquira sabedoria, que meu corpo O louve mesmo sofrendo, que minhas dores, de alguma forma, O anunciem e que cada decisão minha mostre que aqui há uma mulher que crê. Que em meio ao tumulto dessa vida o Senhor me permita tocar a orla de Suas vestes.

    (Cf. Mateus 9:20-22; Marcos 5:25-34; Lucas 8:43-48).

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  • Hoje é 30 de abril de 2020, e estou terminando de quebrar a inatividade deste meu cantinho. Já me percebo imago, mas sempre retorno ao casulo quando sinto que preciso. Voltei a escrever preguiçosamente no dia 12, domingo de Páscoa. Um domingo sem programação no templo da igreja, sem peça teatral sobre a morte e a ressurreição de Jesus, sem ajuntamento devido ao risco de contágio pelo vírus.

    Que páscoa estranha! Se há tempo para tudo debaixo dos céus, estou convencida de que há tempo de estranhezas; esse tempo chegou para mim ano passado, com processos dolorosos de uma vida inteira caminhando lentamente para seu desfecho, com um aniversário em estado depressivo (não tão estranho assim, pois já vivi isso), com uma inquietação confusa em relação à sobrevivência na Terra e uma sensação de fim de linha na área pessoal.

    O Natal do ano passado também foi estranho, com aquela vontade de fazer nada, de reunir com ninguém, de ficar em casa. Um período natalino sem cara de Natal. No dia da peça da igreja eu fui, e como fiquei feliz por estar ali ouvindo a mensagem, cantando com todos os irmãos! Estava meio ausente do ajuntamento, mas aquele momento me alegrou e acalentou minha alma que andava aflita. E eu usei laranja, cor quente que não lembro quando na vida eu usei antes. Estranhei, mas depois gostei.

    A virada de ano foi igualmente incomum. Eu, que nunca dispensei uma queima de fogos, neste último Réveillon sequer quis sair de casa. Pela janela do apartamento, de pé sobre um pufe, acompanhei explosões e assobios vindos de várias partes da cidade; as luzes coloridas no céu eu consegui apreciar de longe. Não tive muita empolgação e entrei em contato com aquilo sentindo um misto de satisfação e melancolia. Fui dormir com a certeza de que o dia seguinte não teria aquela sensação gostosa de ano começando, de ciclo cheirando a novo.

    Seguiu-se um mês de janeiro atípico. Eu, de férias das aulas, mas com as férias do trabalho suspensas, cumprindo 10 horas além da minha carga horária semanal, acumulando um banco de horas que me serviria mais tarde para compensação no período letivo da faculdade. O efeito dessa dinâmica eu senti em fevereiro, quando tive uma quinzena de férias na qual nos mudamos de apartamento e eu, que iniciei o ano um tantinho melancólica, terminei de cair no poço da crise depressiva. Definitivamente, não nasci para trabalhar o dia inteiro. Ademais, tolerar gente conscienciosa demais no local de trabalho me deixou sugada; e esse assunto mereceria uma postagem inteira, mas não sei quando vou fazer.

    Já estou em casa desde o dia 20 de março; uma sexta-feira na qual acordei com dores nas articulações e já nem fui trabalhar. Desde então saí duas vezes com minha irmã; uma vez para entregar máscaras que nossa mãe tem costurado para vender e doar, e outra vez, dias antes, para ir ao supermercado. Esta última ocasião não foi bem um passeio, mas mereceu batom, rímel e cachos presos, pois foi uma saidinha depois de 14 dias dentro do apartamento. Quis ao menos gastar maquiagem, pois não uso há semanas, e parecer saudável também. Não que eu não esteja saudável, mas uma boca corada dá “um ar de viva”, como uma vez me disse minha avó. 

    Estranhamente a convivência familiar não tem sido insustentável como imaginei que pudesse ser. Estranho que ainda não tenha havido nenhum quebra-pau dos grandes por aqui. Que Jesus nos ajude a permanecer apenas com pequenos desentendimentos bobos, se não der para ter plena paz. O feitio de máscaras tem ajudado; entreter a criança da casa tem sido importante. No mais tenho me esforçado como posso pelos cuidados com a saúde, comendo direito e me movimentando. Comecei utilizando as escadas do meu bloco para me exercitar, subindo e descendo rápido, fazendo flexões, agachamentos e elevação para as panturrilhas. Estava correndo também, mas precisei parar pois os joelhos se queixaram.

    Nunca pensei que pudesse ser grata pelos vários lances de escada contra os quais, vez ou outra, bodejei ao chegar do trabalho ou da faculdade cansada. A escadaria do prédio se tornou a minha academia, o corredor de entrada e a garagem viraram a pista de corrida, meu tapete de yoga e a bola de pilates fazem as vezes de estúdio ou clínica. Fora isso, limpeza de pele caseira com máscara de cremes rejuvenescedores, hidratação capilar, unhas feitas e pintadas, tudo isso já houve por aqui e tem sido elemento importante para eu me sentir bem nesse momento.  Orações, meditações, leituras Bíblicas se fazem mais presentes nos meus dias, noites e madrugadas, mas ainda não como eu gostaria.

    Infelizmente meu sono desregulou, voltei a ser notívaga e já começo a sentir que a dedicação ao cumprimento de obrigações não tem sido suficiente. Me chateia que demandas do trabalho e da faculdade estejam recebendo atenção picadinha. Disfarço bem, mas não estou satisfeita; a sensação de falta que me desconcentra – e que não é culpa da pandemia – tem ocupado espaço demais. As necessidades do pós-pandemia já começaram a me desregular no aqui e agora, porém não há ânimo para supri-las como eu gostaria e a ansiedade já me acena de longe. Fico pensando se essa sensação não seria um pouco da loucura da produtividade sussurrando dentro de mim, como se eu não estivesse dando o bastante.

    Não sei. Só sei que nos últimos meses o mundo inteiro se vestiu de distopia e eu, ao me dar conta do momento em que a Terra está, sinto um estranho misto de alívio e pesar. Acho que a paranoia pela sobrevivência começou a encontrar sentido. A inquietude e as sensações estranhas que vivencio há meses estão ganhando significado. Apesar de tantas mortes eu quero permanecer tranquila, pois o planeta está se autorregulando e eu preciso acompanhá-lo e fazer o mesmo. Não tenho certeza sobre o futuro e só posso esperar pelas promessas de Deus; mas o que eu mais sei, no aqui e agora, é que preciso que o Senhor continue me dando o sossego necessário para continuar não estranhando tanto o que está acontecendo. São dores de parto na nossa existência. Que prossigam os gemidos da criação até que tudo seja consumado.

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    Céu ao entardecer, by @casulodelola

    Tudo tem o seu tempo determinado…” Eclesiastes 3:1 a

    “Porque sabemos que toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora.” Romanos 8:22

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  • Em vários relatos bíblicos observam-se pessoas em momentos de intenso sofrimento rasgando as roupas, jogando terra sobre a cabeça ou sentando no meio das cinzas. Essas atitudes representam dor, especialmente em situação de luto. Por aqui se eu rasgasse as vestes ficaria nua e não significaria nada além de atentado ao pudor ou loucura. Se jogasse terra sobre a cabeça me sujaria toda e também não significaria nada além de uma mulher louca brincando com barro feito criança. Sentar no meio da cinza tampouco significaria algo. Demandaria cinza e acender uma fogueira na entrada do prédio é inviável. Costumes da nação escolhida por Deus não significam muito na minha cultura. Não querer cumprimentar as pessoas, não ter estímulo interno para sorrir, não conseguir sair de casa, ser incapaz de cumprir com as obrigações, chorar facilmente etc, isso sim significa algo por estas bandas. Quem está de luto pela morte de seu bem-estar pode se entender, entender o sentido deste luto, ou não.

    A crise depressiva é uma pequena morte. A morte do sono ou do estado de alerta, a morte da disposição, a morte dos sorrisos, a morte do vigor, a morte do apetite. Esta minha morte é temporária. Vou renascer daqui uns dias ou semanas. Até lá, alguns pensamentos precisam ter suas vestes rasgadas para serem analisados intimamente. Até lá, algumas obrigações serão lançadas ao ar, bem como algumas boas oportunidades. Até lá, que eu possa, por favor, ficar quietinha no meio das cinzas, me poupar de sorrir a todos, escolher se quero abraçar ou me afastar de abraçar, me alimentar quando der, dormir quando conseguir, fazer o que puder com a disposição que eu tiver. Que eu possa investir o vigor que me resta na compreensão dessa pequena morte e na vivência desse luto. Entender o sentido da morte do bem-estar é um passo importante para ressuscitá-lo. Vivenciar o luto é a única forma de vencê-lo. Ninguém sai de uma sala onde não entrou. No caso do luto, não se pode entrar e sair pela mesma porta, é preciso atravessar toda a extensão da sala escura. Entrei em crise e certamente vou sair. Até lá, muita paciência e poucas pressões de mim para mim mesma.

    porta abrindo

    “O Senhor é o que tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e faz tornar a subir dela.” I Samuel 2:6

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